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Elogio ao simulacro: a imagem que coincide com o real

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* texto originalmente publicado na edição #51 da Revista abcDesignFotografias de Matthew Tischler ilustram este post.

Simulacro é a simulação que simula a si mesma. Enquanto “simulação” significa imitação de algum modelo, “simulacro” representa algo que não possui nenhum equivalente. Tal diferença concerne a duas concepções básicas de “representação”: que as imagens estão ligadas a referentes (a coisas reais do mundo) ou que as imagens são autorreferenciais (pois só representam outras imagens). A imagem de “felicidade” prometida por uma marca de refrigerante, por exemplo, é autorreferencial, portanto um simulacro.

Em seu livro Simulacros e Simulação, Jean Baudrillard assinala sua insatisfação com o simulacro dos “estilos de vida” contemporâneos, com a estetização cotidiana que, para ele, só expressa um desejo desesperado de camuflar certo vazio existencial. Ocorre que esta avaliação depreciativa do simulacro, ainda recorrente na crítica cultural, depende inteiramente da exigência romântica por uma realidade mais pura ou autêntica.

Ora, simulacro nada mais é do que a afirmação do valor da imagem enquanto imagem. A televisão, por exemplo, pode oferecer uma variedade incomparavelmente maior de imagens de um dado acontecimento do que aquela que o indivíduo poderia ver se estivesse presente no local. Com efeito, os meios de comunicação de massa podem propor uma imagem que é muito mais profícua e contundente do que aquela oferecida por qualquer realidade e que, no entanto, não adquire uma originalidade própria.

Sob o prisma do simulacro, não há lugar para a relação original-cópia. Daí que, como insistia Nietzsche em O Crepúsculo dos Ídolos, a ideia de um “mundo verdadeiro” é a maior ilusão de todas. Liberada da originalidade, a vida cotidiana não mais se subtrai de um modelo ideal, mas se intensifica nos mínimos gestos, na manipulação casual das aparências, no espetáculo fugaz de ver e ser visto.

De que modo uma fotografia seria menos original do que o mundo visto? Em que medida um documentário é mais real do que um filme de super-heróis? Uma vez que as pessoas já sabem do aspecto “fantasioso” daquilo que as entretém, por que continuam a se entreter? Não se trata de mera fantasia, pois o fascínio do simulacro é reforçado na explicitação de seus artifícios. Seu valor é o de não possuir valor inerente, de modo que não há engano possível além da expectativa de engano.

Deduzir com isso que tudo está se tornando mais “falso” implica a exigência de uma contraparte “verdadeira”. Por que uma imagem não seria real, se é por meio dela que nos instauramos no espaço tangível do mundo? Um número seria mais ou menos real? O radar do morcego seria mais ou menos real?

A importância do simulacro é a de anular essas distinções. A aparência coincide com o real e o simulacro nos localiza nele. Simulacro é o que aparece, o que se dá a ver. Tatuagens coloridas sem significado, notícias manipuladas no Photoshop, emoções instantâneas em protestos políticos ou em parques de diversão – tudo converge para o real e termina no real. Vale reforçar, por fim, que simulacro nunca foi um fenômeno “recente”: ainda acorrentado ao navio, Ulisses (de Homero) continua a escutar um alucinante canto.


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